quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Por mais uma cachaça (ou a voz de Deus)

Era uma senhora mal tratada e desnutrida. Cabelo mal cortado, quase careca. Com tufos que se espalhavam por toda a extensão do seu coro cabeludo. Sua fama era de louca, com um corpo castigado e um rosto de dar medo. Sozinha gritava com todos os transeuntes que passavam por aquela movimentada avenida na periferia de São Paulo.
Ela tinha motivos para gritar com todos, mas ao sentido puro do grito, era por simples desabafo contínuo. Ela, em forma de gritos, tira o ódio que carrega dentro de si. Urrando assustadoramente descarrega palavrões, infâmias e todo tipo de sujeira que pode ser ouvido pela audição humana.
Certo dia encontrei-me com ela e ouvi de sua boca o primeiro palavrão. Após um "bom dia" que saiu da minha boca, começou contar de sua vida. Me disse que tivera filhos, todos mortos antes dos 20. contou-me que teve marido, hoje um velho louco que vive no centro. Disse que já fora bonita e que tivera a sorte de ter sido feliz algumas vezes, mas que hoje era, em Terra, a voz de Deus. Ele, me dizia ela, ficava bravo com todos os rostos irônicos, satíricos, irritados, desatentos, preconceituosos, ou seja, tudo que o ser humano tem de sujo.
Contou-me isso dentro de uma lotação onde, como sempre, tinha um cobrador e um motorista extremamente mal educados. Depois de me falar sobre a vida, gritava com ambos loucamente. Se debatia e dizia sobre o desrespeito humano, mas de forma bem desrespeitosa. Era engraçado pensar que aquela era a voz de Deus. Era bem plausível que nossa raça havia realmente irritado-o. "Fomos criados a sua imagem e semelhança", ela gritava, "e nós o traímos!".
Acredito que ela tenha razão. Que venha o fim dos tempos e extermine o homem. Ou que me tragam mais uma cerveja gelada pra curar a dor. Ou que as profecias sujas sejam mentirosas, ou que a minha solidão fosse a de todos. Queria ter um bom coração, para ser bom como a correspondente de Deus. Por mais uma cachaça que limpa a alma da impureza do hipócrita mundo limpo.

Um comentário:

  1. Tá virando escritor hein, muito bom, afinal não só de cachaça vive o homem, mas de gritos e brincadeiras também, abs

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