terça-feira, 30 de março de 2010

Sem som

Incerto ao seus ouvidos o que de nada há para ele. Insonoro sopro divino, musical. Sonso, sem ser santo. O som. Tentara tantas e tantas vezes explicar sem sucesso. Desde que nasceu, quando ainda em primeira infância ou já quando na escola via meninos e meninas se balançando motivados por algo que os unia. De lado, olhando para um amigo, gesticulou para saber o que era aquilo. Chegando em casa, se lia nos gestos daquela mãe mais uma vez:
" Filho.Tantas vezes já lhe disse. A música é um som. Não há como explicar."
Lágrimas, nem tantas, mas doídas. Como que algo assim não se explica? Sentindo nojo de si, correu e sentou ao lado do irmão. Esse também entendia os textos gesticulados, cada pontuação facial, cada elevação de tom das vozes corporais.
" Posso tentar explicar. Mas acho que não vai sentir o que é."
Pegou uma folha e um lápis. Ligou o som e rabiscava de acordo com o que, dizia ele, sentia ser a música. Ao terminar, a folha rabiscada foi destacada do caderno e observada por coisa de dias. E assim continuou.
Todo dia da vida, vidrado de tatear tácito vento trazente da música. Tentava triste, buscava e rebuscava cada novo conceito. Quando velho, já entendente das coisas, com teses acadêmicas sobre música e surdez, e coisas da vez, conheceu um menino sem som. Visível.
Se balançava como meninos e meninas que se lembrava. Algo o motivava. Era levado de alguma forma, mas não tinha poder para aquilo. Em gestos, os textos foram esses:
" Meu menino, o que está fazendo? "
" Estou dançando."
" Qual música? "
" A que está tocando agora. Não sente? "
" A música? Sentir?  E como você ouve? "
" Sabe que não ouço. Sinto. "
" Então me diga, o que sente? "
" Isso."
Manteve-se balançando. Olhos vidrados no céu. Não bem som, mas naquela tarde sentiu o que para ele, seriam algumas notas musicais. A água que desceu do rosto do homem que aprendeu com o menino sobre música, molhou nem meio palmo de chão. Mas a música que ouviu naquele dia fez com que o chão se abrisse, o céu se abrisse. Som com sentido, sentido.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Últimos passos

- E há quanto tempo buscava isso?
- Nunca busquei. Isso não se encontra assim.
- Calma. Você não me entendeu.
- Não, não. Quem não me entendeu foi você!
- Por quê?
- Isso não se acha, se ganha.
- Merecimento você diz?
- Muito mais que isso.
- Mais do que merecer?
- Não sei bem. Me parece mais. Há que ganhar mesmo, entende?
- Mas afinal, ganha quem merece oras!
- Tudo bem. Acho que merecimento pode estar certo.
- Como sempre, contradiz-me sem pensar.
- Faço isso por merecer, não sei se nota!
- Não merece nem meu riso, seu idiota!
- Mereço pois o tenho.
- Mas merecimento nem é tudo mesmo, né?
- Provaste a mim do contrário.
- Provei nada. Se cansou de argumentar.
- Nunca me canso.
- Por que não?
- Porque você não merece.
- Pois, não?
- Talvez um pouco.
- Você é ridículo.
- Sei disso.
- Mas se não buscava, o que fazia?
- Esperava para poder merecer.
- (Ninguém merece...)
- Ouvi isso... e mereço!
- Merece mesmo, mostre!
- Tenho feito isso há tempos.
- Digo que desde de sempre és arrogante.
- Ei de ser o que dizes, pois conhece-me.
- Pare de asneiras. Ironias não me atingem.
- Tanto atingem que perdeste a linha.
- És perito na arte de me irritar.

Uma voz pronuncia palavras decoradas em ensaios:
- Aceito.
A mesma voz diz palavras semelhantes, às quais ela responde:
- Aceito.

Um beijo longo.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Vida qualquer em uma grande cidade

Sumiu e ao silêncio se entregou. Andou por ruas atoladas de prédios vertiginosos e vestiu de cinza seu espírito. Em cada nova pisada, asfalto sujo, ruas ladrilhadas e calçadas com pisos desenhados, ele se recordava da última palavra.

"Acabou".

Os cenários lentamente iam mudando e trazendo novas arquiteturas, construções antigas e talhadas de glammour daquele tempo. E sem cessar a palavra que lhe afligia martelava constante e persistente.

"Acabou".

Mas se acabou, as coisas não acontecem mais? Isso significa que não há mais no que acreditar? Ou seja, que daqui pra frente nada mais vai existir como antes? Nada? Nem sombra? Nem ao menos, diabo, um pouquinho que fosse? As ruas se abriam em avenidas. Os viadutos eram vistos de baixo. Os aviões circulavam nos céus. A fumaça saía de todos os carros. De todas as fábricas. Os mendigos enfileirados sorriam. Os camelôs gritavam à todo pulmão seu produto. As pessoas comiam Hot-dogs e tomavam um açaí com sucrilhos.

"Acabou".

Mas como existe fim? Isso não é coisa de ser humano? De gente burra? Que acaba com as coisas? Não é melhor que continuem? Que cresçam? Mas por que acaba? Floresçam? (Acaba por que?) Andem, evoluam? Sentou em uma praça ao lado de garotos. As pombas comendo qualquer lixo que fosse. O lixo espalhado. Em São Paulo, tem muita praça assim.

"Acabou".

Notou suas mãos trêmulas, a decepção com o fim. Poxa, mas como que acaba? Há tanto a fazer, tanto! Havia necessidade em seus movimentos. Uma pessoa decepcionada fica mesmo assim. Havia um resquício de lágrima. O chão sujo, ele se misturando à paisagem, fazia parte dela. Elevou às mãos para o céu. Os outros garotos cheiravam cola. E ele nem se importava.

"Acabou".

E ele ali, sem entender conceitos abstratos sobre fim, sobre acabar. Questionando profundamente se isso era justo. Por que? Ele tinha dinheiro, caralho. Decidiu-se: baforou no saco mesmo, já que a porra da pedra havia acabado.