quinta-feira, 20 de maio de 2010

Rolimã

Viu na ladeira o menino farroupilho sentado em madeira velha. Rodas girando. Alta velocidade. Corpo e complemento eram menino e pedaço de pau. Se para a direita o cérebro movia os ossos, para lá iam os emadeirados. Viu e gostou, sorriu e pensou que talvez mais velocidade faria bem para ele também. Imaginou o tanto de coisa que faria, o tanto de lugares que poderia estar em pouco tempo, as coisas que veria. Ir ao Japão ou a China, hein? Mudar de ares a todo tempo, viajar, ver o pai que mora longe, ir na padaria comprar pão. Era ou não uma tremenda solução? E os dias que chegava aquela tia chata, poder fugir sem ser visto, correr o máximo que podia. Ia ser uma delícia ter o vento batendo forte na cara. Ia compor seu espírito de coisas boas, de energia, velocidade. A adrenalina ia lhe fazer bem.
Claro, caro leitor atencioso e detalhista, que ele não tinha consciência desses acontecimentos, que narro como narrador "heterodiegético colegiado" que lê na essência humana o que um corpo sente ao sentir tamanhas sensações benéficas ao bem estar. Claro que percebeu meu tom retórico rebuscado rente ao rito da criação literária. E também óbvio é o fato de ter compreendido no fundo de sua alma que falo de alguém que ainda não disse, mas sabe quem é, mas não minto em tal afirmação e era exatamente aquilo que sentia, como já antes afirmei, sem saber. Aliás, ainda não te contei, como vistes, de quem falo e ora, não padece levar o dia todo pensando e repensando, retomando e tramando as ideias, para notar que se trata de uma criança. Quem a não ser ela desabrocharia em sonhos tão velozes de maneira tão ímpar? Quem seria tão ingênua a ter de desejo uma tábua e rodas de rolimã? Não falei de carro importado, de avião. Sabe disso. Falei de pau velho, madeira podre.
Passada a intromissão lírica do meu eu, retomo e conto que andando pela rua, o menino e o irmão estavam. Quando de súbito encontrou. Olhou ao irmão que sem entender retribuiu com um olhar confuso. Abaixou e encostou no objeto. Nos seus muitos 4 anos de vida, nunca havia pensado em realizar tamanho sonho. Era perfeito. Não sabia ele que o dito cujo outrora fôra uma caixa de fruta, daquelas que se vende uva e que agora estava aos pedaços. Mas era o seu passaporte para o mundo. A possibilidade de conhecer todas as coisas. Pegou a velha caixa. O irmão soltou um "Solta isso", que efeito nenhum surtiu. Desistiu e sorriu. Foram pulando felizes. Na esquina a mãe olhava com olhar vívido. Os olhos do garoto brilhavam. A mãe parecia confusa. Na cabeça do menino a mãe já gritava de felicidade. Era o seu momento. Sua conquista. Corria pulando, como em conto de fadas. Chegando na esquina, um sorriso na face. A mãe o olhou. E daquela distância gritou a todo o pulmão, para quem quisesse ouvir: " Larga esse lixo agora, seu capeta!"