segunda-feira, 25 de abril de 2011

Amor "burguês"

Abandonei o balé. Até meu cigarro anda um tédio. Meu marido diz que pareço bem, mas ele mesmo anda pelas ruas a olhar outras mulheres mais novas. Minhas amigas vivem a me chamar para tomar uísque e falar besteira. Elas me enchem com putarias que não tenho mais saco pra ouvir. Abandonei a rua. Minha casa é meu país. Sou bairrista. Sou fã do meu piano de calda, da minha cozinha. Ouço Elis o dia todo e me acabo cantando sozinha quando, é claro, estou sozinha. Meus filhos hoje tem 14 e 16. Vivem na casa dos amigos correndo por aí. Queria um condomínio por ser mais seguro, está aí: tão seguro que na casa não fica ninguém. A minha segurança está garantida pelos muros da minha casa.

Abandonei a ralé. Tinha família pobre, que nem sei se viveram. Casei bem, graças a Deus. Hoje o meu palacete é um sonho, e de pobre tenho uma de extimação que lava e cozinha. Adoro ela. Me faz ver como é bom ser melhor que os outros.


Abandonei tudo e todos. Já nem ligo para as prostitutas que sei que satisfazem meu marido por quantias quaisquer. Se elas se acham espertas, não me conhecem. Vivem a dar por mixarias. Vivo bem com um homem só, que me da muito amor. Muito mesmo! Outro dia me veio com um brinco que brilhava mais que a panela que a Lourdes lava. Se não me amasse não me compraria presentes tão caros. Amor e ostentação andam lado a lado. Amo cada peça de roupa, cada sapato. Cada ato pensado, comprado.


Abandonei-me.

Só, sinto como rugas no cérebro. Não penso, nem sinto, nem nada. É por isso que hoje vou dar para o máximo de pedreiros que eu puder. Fazer coisas que nunca fiz com ele.

Só pra ver se me animo...

sexta-feira, 15 de abril de 2011

As Viagens de Gertrudes

Imagine vilarejo sem nada, abandonado por Deus - Sarava - longe das florestas e d'água, árido, seco, chão de pedra, pouca gente e bicho, onde quase nada que planta dá. Lá nasceu Gertrudes, filha de Narcisa, esposa do finado Zé Caldeira. Veio do nada pra capital, onde a vida é mais bela. Já nasceu ouvindo histórias da atriz Narcisa, sua mãe, com grandes rodas do lado de fora do Theatro Municipal. Assim, vivia sua infância pelo mundo. Foi pra tudo quanto é canto, da Groelândia à Disneilândia, dos Subsarianos aos Marcianos. Só imaginando.
O maior tesouro que tinha era uma caixa grande. Um Baú. Era de onde saíam todas as histórias. Baú com tantas histórias pra contar, com tantos lugares pra visitar, tinha mesmo é que ser trancado a sete chaves. E era assim que era. Como plantar era difícil e água contabilizada, os alimentos eram esses. Mas todo mundo morre e com Narcisa não foi diferente. Estava em cena, quando leões em meio a mata nativa angolana mordiscaram-na. Estavam com fome, assim como ela. Caiu em cena e nunca mais levantou.
E como morar com madrasta do mal não combina com carnaval, foi morar em uma tribo, lugar que chegou do nada em meio à fuga desembestada.
Cresceu em meio a Pigmeus anglosaxões em floresta na Idade Média. Lá aprendeu a caminhar sobre o mundo a passos de gigante. Passos que passam, eis que tropica em caixa grande. O tesouro. Estava perto de onde caíra o corpo de Narcisa e Gertrudes já nem se lembrava. Apagava com subjetividades e passeios. Trancado. As chaves estavam perdidas longe dali, em algum canto longínquo.
Piscou os olhos, bateu os calcanhares e chegou à antiga casa. Abriu a gaveta (agora enquanto a criança que ainda era) e pegou as sete chaves. Abriu um a um os sete cadeados.
O baú escancarado berrava para a moça que viveu entre pigmeus, pois viver entre anões era fábula de criança-mundo.
Conhecia todo canto, todo conto. Lembrava de todas as viagens com Narcisa. Menos uma:
Pano rosa com palmeiras e animais e pavões e flores, pano grande e leve, pano com pontas. Chapéu com cara de cobra que comeu elefante (imagem poética de criança-mundo). Círculo roxo, coisa de enfeite de braço de mulher-cidade, de boneca urbana. Lembrou.
Eram coisas de praia. Mulher-cidade nunca usava na rua. Roupa de praia. Moda praia. Imagem poética de mulher-cidade. 
Praia? Nunca viu o mar! Não sabia chegar a passos de gigante lá. Era tão inalcançável, tão grandiosamente desejável. Era água demais. Ela que sempre viu água nunca. Água pouca. Água implorada em copo americano.
Andou dias segurando em Sol torradreira, imagem poética que desconhece Gertrudes, os objetos do tesouro. Foram semanas. Parava em alguma casa, pedia comida como criança e andava. Chegou a pegar carona, enquanto moça, com aves e cachorros e minhocas. E chegou.
À sua frente, da moça grande que andava sobre mapas, o mar. Gigantesco, ondulento, mareoso. 
Para nós que não vemos as histórias e nem baús gritantes e nem pigmeus medievais e nem leões mordiscadores, a cena que se via era a de uma menina raquítica, com corpo de morte, pequena, da pequenês pigmeutica, 8 anos. Estirando canga velha, empoeirada, que se senta em cima, com um chapéu amarelo amarelado, que de grande cobre os olhos e um bracelete que chegava ao seu ombro. Desejo de menina-metrópole que pega o sapato da mãe. Sentada admirando o infinito mar. Mar de gente, praia de concreto, segurando um saco na mão direita, olhos vazios.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O inusitado conto do encontro - Ato 2

Caminho. Mantenho-me distante do filosófico, foco-me nos reais. Já viu uma rua de terra? Já andou em trilha no mato? Entre prédios, casas? Gosto de caminhos. Caminhar é dar vida a eles. Somos o sangue dessas vias. Subidas, descidas. Aquele era diferente. Acho que o choque da situação tornava-o mais denso. Denso, isso mesmo. Não nego certa tensão e talvez tenha sido ela a principal responsável pela minha tomada de consciência sensitiva. Tornei-me sensível aos detalhes em volta.
Uma padaria na esquina nos tirava da agitação da avenida principal e nos levava por um caminho cheio de árvores, casas térreas, buracos e lombadas. No alto da padaria, uma locadora de vídeos e jogos. Lá estão os filmes que me assustavam e os que me divertiam. Lá estavam os cartazes e as escadas que me levavam para uma porta sempre aberta. Fiquemos lá embaixo. Do lado uma farmácia. Ou outra coisa. A rua continua, e à esquerda está um prédio onde quase moramos. Era meu sonho burguês. Tão simples. Tão. Na esquina uma árvore e uma grade verde. Como esqueci da grade verde! Passava minhas mãos por ela, como a criança ao meu lado fazia. Na esquerda, uma rua que me levava aos meus antigos amigos que não estavam mais lá. À direita, uma locadora roxa com videogames ligados em uma rua que cortava meus caminhos. Prosseguindo naquela pequena ladeira, tinha um bar e um senhor sentado embaixo de uma árvore fazendo jogo do bicho. Tinha uma fábrica, mais vendinhas e uma rua sem saída. Lá estava um grupo de moleques jogando bola. Perto dali, minha antiga casa.
- Chegamos, vamos entrar?
- Do que você está falando!? Não podemos entrar! Essa casa não é mais nossa..
- Claro que sim! Não está vendo? O muro pela metade, o portão velho. É nossa casa!
E era. Eu sabia que a casa havia sido vendida. Já havia, inclusive, passado próximo da casa depois de vendida e ela fora completamente reformada. Naquele dia estava como sempre foi. Velha, pichada, linda. Porém, não havia ninguém em casa.
- E como sempre, esqueceu a chave, tenho certeza - disse já sabendo a resposta.
E sentamos. Aquele era o caminho. Tinha que contar as novidades.
Contei sobre meus estudos. Contei sobre meu emprego. Contei um pouco das minhas viagens. Aventuras, essas coisas... Escondi as perdas. Doeram tanto que não valia contar para uma criança.
- Chegaram.
- Quem?
- Como quem? Estudou tudo isso e ficou burro. Eu saberia quem!
Eram eles. Vinham em um Passat laranja. Pai, mãe e irmã. Lindos como eu há anos não me lembrava.
Aliás, como não me lembrava? Minha irmã mãe de duas crianças que rolavam comigo jogando UNO, quando possível. Era uma pulação, uma gritaria. Mas ela, o que dizer?
Meus pais, ambos já haviam morrido. Partiram cedo demais. Não deu tempo nem de enjoar. De arrumar briga de sogra. Nada!
E em minha frente estavam eles. Duas pessoas felizes demais, com uma criança. Uma menina.
- Olá filhos!!!

(CONTINUA)