Voar. Imitação que foi sendo aprimorada e se tornando tão bem feita que o homem, ser raquítico, fraco, lento, conseguiu ir mais alto e mais rápido que muito pássaro, com as limitações tecnológicas levadas em conta, afinal, é assim. Foi desse sonho que aquele jovem rapaz se alimentou. Enquanto imitava o som do avião com a boca, quando pequeno, fazia com que aquele simples brinquedo atravessasse o ar em mil piruetas. Seus olhos brilhosos piscavam pouco e acompanhavam com a animação e entusiasmo naturais dos pequenos. Mas é quando se sente o mesmo, os olhos do mesmo jeito, a barriga que gela, é que se entende o quanto uma coisa é importante pra si. É quando se sabe que encontrou uma motivação, uma coisa para fazer e amar.
Foi então conhecer gente com avião, ia a hangares para poder ver de perto as máquinas que o emocionavam, por dentro, de perto. Olho que enche d'água na primeira vez. E nas outras. Sente o sonho cada dia mais vivo, lembra-se das noites e noites mal dormidas em leituras e estudos sobre como se voa, cada modelo, história... só quem conhece o mundo da aviação entenderia quanto amor pode existir por uma máquina voadora. As pessoas vivem por poderem estar no céu!
O amor que vai crescendo E o primeiro voo e os outros. Cada vez um sentimento novo, uma nova sensação, asas que cortam o ar, velocidade. Ensurdecedor, o motor arrepia. O grito dentro da cabine mistura a necessidade de se comunicar com a adrenalina, com a inigualável sensação de cruzar as nuvens, conhecer o horizonte. O grito é a válvula.
Mas o menino gostava de vôos como os feitos na infância. Olhava-os voando em formação vindos de longe. Juntos, esfumaçavam o céu, eram como pássaros migrando, deixando sua mensagem. E se aparecendo. E dançando. Era disso que ele gostava, era o que o motivava, combustível de um sorriso.
Certo dia quando foi conhecer um desses, tirou foto, chegou em casa animado enquanto contava tudo à sua mãe. Ela se preocupava, mas se sentia tão feliz por ver seu filho daquele jeito. Mas até mesmo os animais se machucam... voar é coisa perigosa. Ele, passageiro se divertindo, bico embicado em direção contrária ao céu, espírito que se vai. Acontece. Partir, no entanto, enquanto faz o que te dá tanto deve ter seu prazer. Todo mundo vai, que seja com amor. Mas era tão jovem, tão jovem.
A mãe daquele menino tinha sonhos quando também era jovem, um deles de ser uma grande mãe. Acordou na manhã seguinte ao acidente e fez uma ligação.
- Gostaria de saber se seria possível vocês irem fazer uma homenagem ao meu filho.
Contada a história, o homem do outro lado da linha lamentou o fato de já ter um compromisso naquele dia. O tal homem tinha uma dessas esquadrilhas que faz show por todo o Brasil, era conhecido no ramo. Mas antes de subirem no avião e partirem em direção ao show daquela tarde, o homem e o outro piloto, experiente e companheiro de longa data, decidiram, antes de irem para a apresentação, desviarem um pouco o caminho e passarem por cima do cemitério onde seria enterrado o menino. A geografia dos céus reduz um pouco os limites, as distâncias, torna as coisas mais próximas.
Voar. Quando o homem assume essa possibilidade, cria instituições, tradições. E a tradição de quando se morre alguém de uma esquadrilha é simples: os aviões estão em formação, quando em um dado momento um dos aviões deixa a formação. Uma bela metáfora de que mesmo com um a menos, a vida continua. Os pilotos se aproximaram das nuvens que passavam perto ao local onde o menino deveria estar sendo enterrado. Estavam lado a lado. Fumaça saindo, céu riscado... e um dos aviões abandona sua formação. Seguem direto ao compromisso. Ao pousarem, recebem uma ligação, como devem imaginar, de agradecimento.
Não há maneiras conhecidas por mim para explicar certas emoções, talvez por ser tão jovem quanto o menino, talvez por inexperiência literária, de vida. Tentarei descrevê-las da melhor maneira possível, via os acontecimentos durante a passagem dos aviões, na visão de quem estava velando aquele garoto. Possivelmente elucidará o conteúdo da ligação.
A dor suprema de uma mãe que carrega o caixão de um filho, a mesma que o carregou em seu ventre, carrega dentro dele os sonhos interrompidos e deve ser uma dor que de tanta dor, não dói. E lá estavam, todos, caminhando lentamente até o local onde pessoas esperavam em torno da terra retirada pá a pá. Quando chegam, palavras são ditas, outras sentidas, se misturando com as lágrimas, soluços, descrença. Tão jovem, tão jovem...
A mãe tira do bolso uma foto do filho, em prantos, mãos fortes. Procurava uma ajuda divina, algo do céu que dissesse pra ela que tinha feito o possível, tinha feito de tudo. Colocou a foto preferida, a dentro daquele avião, daquela esquadrilha. Quando ao longe ouviu os motores. Bem em cima daquele local, passavam os aviões. Ela, que não imaginava que eles estariam mesmo ali, já meio desacreditada que seu pedido seria atendido, sentiu um pouco de felicidade: ele estaria feliz com a homenagem. Um avião de repente muda de direção, enquanto o outro segue. O mesmo avião fotografado pelo menino. A mesma fotografia que descia junto com o caixão. A mesma colocada por sobre o seu corpo. A mãe engoliu suas lágrimas, olhou ao céu agradecida e entendeu que havia sido uma grande mãe. A vida, continuava.
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