sábado, 7 de novembro de 2009

Cachoeira de tudo

Ele tremia. Era a primeira vez que veria uma cachoeira. O tremor não era causado por ansiedade ou medo, e sim por uma deficiência mental. O nome da doença não tem nenhum valor nesse instante, caro leitor. Pois se tem dúvida, busque informações em lugares quaisquer. O fato é que uma descida entre pedras e barro e árvores e irregularidades do terreno dificultavam sua descida. Via-se no rosto do garoto, que na verdade era quase um adulto, mas que aparentava um garoto, o rosto da luta de uma descida dura. O corpo tremia cada vez mais, como se em instantes poderia se debater por não aguentar tamanho esforço. As pessoas em sua volta o carregavam com cuidado, ora quase o carregando no colo. O cansaço intenso de uma descida simples, cada passo lento, cada novo desequilíbrio, cada nova retomada. Sua cabeça atrás tinha o desenho de costura que ia das costas até a parte superior de sua careca irregular, numa cara simples. Traços duros. Sorriso fácil.
Antes da descida, o homem que o acompanhava disse em tom de brincadeira: "Não repare, ele bebeu logo cedo." Após as risadas, com muita dificuldade ele disse: "Mas foi você quem me deu a bebida". Todos riram. A caminhada para a descida não era das mais longas, mas a cada novo passo não se notava nada diferente. Como se aquele passeio fosse comum.
A trilha continuava perigosa, com os obstáculos piorando. A verdade é que o instrutor, que já havia feito aquele caminho centenas de vezes, nunca havia notado o quão difícil poderia ser. Observava assustado, e muitas vezes até tinha medo de acontecer algo ao garoto. Em muitos momentos foi ele também ajudar na caminhada, carregando o ser que tremia, o corpo parecendo carro velho, tremendo feito quem morre de frio. O corpo tenso aumentava a tremedeira.
Durante todo o trajeto, o homem que acompanhava o garoto ia contando ao instrutor sobre quem tremia. Dizia que era um garoto que pouco saia de casa, não vivia. Por causa da doença nem escola frequentou. "Ele não conseguia seguir o ritmo dos outros alunos. Escrevia tudo torto e, sem escrever, não podia ir pra escola. Largou na oitava série.". Então, notava-se um tom a mais de importância para a descida. Naquele instante começava a chover.
A chuva iria dificultar ainda mais naquela empreitada, porém, ao notar um pouco de tristeza na cara do garoto, todos continuaram a descida. Alguns escorregões, algumas quase torções, já que ele não olhava para baixo, marcaram a descida. Aliás, não olhava para baixo por que era imensa a dificuldade de concentrar o movimento em mais partes do corpo. O som aumentava. Chegaram na tal cachoeira.
O menino caminhou no mesmo ritmo. Olhou a cachoeira com os olhos de quem após 21 anos conhece uma. Pisou cada pedra como se andasse em nuvens. Molhou seu pé como se sagrada fosse aquela água. Sentou numa pedra recebendo na cabeça a queda d'água. E lá permaneceu.
Não há descrição de tempo possível em toda a literatura que possa dar conta de quanto tempo foi. Com os olhos ora fechados, olhando por dentro, ora abertos, olhando onde estava. A mata tornou-se o mais divinizada possível. A única certeza é que as pessoas desapareceram naquele instante. Todas elas. A água tirou um pouco de suas costas o peso de ser deficiente mental. De ser diferente. Ali era igual. Um ser humano normal. Como desde que nasceu, nunca havia sido.
. Subiu todo o morro como se fosse plano. Como se alcançasse o céu. Até porque, naquela tarde, ele podia tudo.

Um comentário:

  1. Uma narrativa que prende demais!
    Um fim totalmente permitido ao personagem que nos deixa estaticos, na inercia do mesmo sempre!!
    Demais!

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